Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna
imaginária, apoiando-se no vento. Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de
quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido. Irei segui-lo na rua para
descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me
tornar igual. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de
seu andar. Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a
vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não
perdeu a lembrança de caminhar.
Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é
um homem inteiro.
Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o
cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco
esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.
Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito
pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de
controlá-la.
Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e
contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o
quanto ela é musculosa. Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a
realidade do fundo das pupilas. Sua aparição transforma nosso jeito de desejar
o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos
aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia. Porque o
cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No
amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se
tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.
Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para
lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu
próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de
equilíbrio, e sim de um lugar para ir.
O cão manco é meu professor de transcendência. Explicou-me que eu não
posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para
retribuir a ternura de outro amor.
Carpinejar.
Esse texto é um poema convidativo à experiência de transcender. Legal ter postado ele. Abraços.
ResponderExcluir