sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Cão manco


Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se no vento. Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido. Irei segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me tornar igual. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de seu andar. Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança de caminhar.

Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem inteiro.
Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.

Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de controlá-la.

Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa. Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo das pupilas. Sua aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia. Porque o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.

Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um lugar para ir.

O cão manco é meu professor de transcendência. Explicou-me que eu não posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a ternura de outro amor. 
Carpinejar.

sábado, 17 de agosto de 2013

Enganos e Acertos


Olhar, sorrir, mentir. O amor abre espaços para enganos. Enganamo-nos para viver a dois. A beleza da cumplicidade e a frieza da indiferença convivem lado a lado. Quando você acerta é porque errou há tempos. Possivelmente já perdoou seus arrependimentos e encontrou novos motivos para pedir desculpas. Como vivemos eternamente enganados no amor?

Talvez porque o engano retira-nos da mesmice sentimental. A apatia de nosso conforto é provocada pelo interesse afetivo, que cresce e se distribui promiscuamente em nossos pensamentos. O interesse é orgulhoso e objetivo. A minha mente me sabota quando durmo. A dúvida da humanidade é saber se evoluímos com os nossos amores e enganos, ou apenas enterramos velhos sentimentos em um cemitério de recordações não vividas.

Lembrei, lendo hoje este poema:

“Como nos enganamos fugindo ao amor, como o desconhecemos talvez com receio de enfrentar, sua espada coruscante, seu formidável poder de penetrar o sangue e nele imprimir uma orquídea de fogo e lágrimas”.

Foto do filme: Brilho eterno de uma mente sem lembranças

sábado, 10 de agosto de 2013

No outro lado do quarto


Há algum tempo não escrevo neste blog, creio que devido a situações em minha vida recente. Situações boas, dessa vez. Bem, de qualquer modo, temo pelo despreparo dessas linhas, mesmo quando ainda estão apenas em minha mente.

Observando a cortina, o tapete, a TV, às vezes sinto um leve sussurro de “Boa Noite” da solidão do outro lado do quarto. Já somos amigos. Então, lembrei. Penso que não devemos ter esperança em algo, mas fé. A fé nos move, nos evidencia, ela prova quem somos. A esperança morre, para e espera algo que não teremos se assim fizermos jus ao seu nome.

Não tenho esperança na igreja, ou no fim da fome na África, ou na abolição da corrupção em nosso país. Tenho fé no que podemos fazer, construir, mudar. Se sinto fome, como. Se estou animado, brinco. Se estou triste, me calo. Palavras não ditas são filosofias escondidas. Se tenho esperança, pratico a fé. E a minha é deslocada, atípica, sutil. Se você a percebe, é por que deixei que você percebesse. Minha expressão de fé não é vã. Eu a exerço quando te observo, toco em você e deixo um gesto no ar. Minha fé está no pequeno espaço entre nós. 


Se você sofre, tenha fé. Não ache que ninguém quebrará o monopólio de sua dor. Termine de se arrepender e pratique mais de você. É preciso discutir a fé quando combatemos a esperança preguiçosa. E quando fecho meus olhos e vejo você, falo de fé com a solidão no outro lado do quarto.