terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Onde cabe uma poesia?

Há uns meses atrás dei um livro de poesias para uma amiga, mas antes, fiz questão de lê-lo com cuidado e carinho, pois sempre admirei como podemos extrair informações e aprendizados valiosos desses textos. Apesar da métrica muitas vezes perfeita, rimas prazerosas e doses sentimentalismo (no bom sentido, claro), acho que gostamos de poesias porque nos identificamos. O pôr-do-sol, viagens, nascimento de uma criança, amizades ou decepções amorosas, são coisas que estão próximas e atingem nossa vida, querendo ou não. Quando terminamos uma poesia e fechamos o livro imediatamente, é porque aquilo fez sentido e o reflexo físico foi apenas uma consequência do que sentimos ao ler aquelas palavras. Pra mim, poesia devia ser incentivada nas escolas. Falo “incentivada” ao invés de “ensinada”, pois ninguém ensina a alguém a como ser um poeta. É algo que vai além, como o próprio conceito é muito pequeno se comparado ao valor subjetivo da obra. É um romance escrito em poucas estrofes. São linhas rasas que te levam profundo. É uma vida que cabe numa rima.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Inversão



Um dia ele voltará para casa e andará por outra rua, pegará um caminho diferente, só para variar e confundir o cérebro. Irá a outro supermercado, comerá em outro restaurante, dará comida para um cachorro na rua e ouvirá outras músicas. Escovará os dentes com a outra mão e usará o condicionador antes do shampoo. Dormirá no outro lado da cama e depois em outras camas.  Sentirá amor no lugar da indiferença.

Trocará o barulho dos carros pelo canto dos pássaros. Comerá o doce antes do salgado. Fará exercício ouvindo Chopin e relaxará ouvindo heavy metal. Correrá com tempo e caminhará quando tiver pressa. Sentirá saudade antes de ir embora. Escreverá com a mão oposta e começará um texto pensando no final. Morrerá para renascer a cada dia. Viverá antes de sonhar.

Assim, um dia a vida se inverte. Inverte-se a vida um dia, assim.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Um homem qualquer


João trabalhava numa fábrica, era pontual, zeloso e amigo. Todos gostavam dele, ainda que por vezes fosse ausente. Além do trabalho e da rotina da casa, João escrevia. Algo que ele escondia da família e da maioria de seus amigos porque sempre rolava um “escreve sobre o quê?” ou “você escreve onde? tipo um blog?”. Ele não entendia essas perguntas, apesar de simples e diretas. Para ele, explicar sempre foi mais difícil que simplesmente sentir. Sentia até demais, inclusive. Não somente dores emocionais acumuladas de anos, mas físicas também como dores nas costas, pernas e cabeça, já nos altos de seus 56 anos vividos. Com certeza a dor que mais sentia era a que vinha acompanhada da solidão, que desde criança se tornara sua amiga. O pior é que ela era uma amiga grata e fiel, pois nunca deixou João, mesmo quando ele não queria ficar só. Ele acendia um cigarro no quarto, sentindo o vento frio que vinha da janela semiaberta e ouvia uma música antiga, talvez dos anos 70, e lá sempre estava ela. Em uma noite, ele abriu as gavetas em busca de documentos no meio da noite e, como uma piada de mau gosto do destino, encontrou cartas e fotos perdidas de sua juventude. Perdidas, empoeiradas. Ele olhou para o lado e não encontrou a solidão, que costumava fumar um cigarro e tomar um gole de vinho ao seu lado em noites como essa. Dessa vez ele estava sozinho, de fato. Só ele e aquelas cartas e pensamentos que vieram em forma de lágrimas que assim como a chuva de verão não hesitaram em cair, quase que instantaneamente. Após esse breve momento, João não teve dúvidas. Ele nunca esteve sozinho, pois, como dizem, somos seres de falta e ninguém sai ileso de ninguém. Ele pensou. As pessoas ficam conosco, com todas as suas alegrias e tristezas, presenças e ausências. Assim seguimos, e assim seguimos.


segunda-feira, 28 de junho de 2021

Inverno, primavera

O inverno chegou. O verão que está diametralmente oposto também chegará. Diferentes estações, diferentes sentimentos. Fazer qualquer coisa no frio é difícil, alguns podem até dizer que gostam do inverno, mas tem coisas que o ser humano nunca irá se acostumar. Não por que não gosta, mas porque simplesmente não está na nossa natureza, nossa biologia. Acomodar-se no frio é um exemplo. Uma vez, em uma entrevista, perguntaram a um esquimó se para ele o frio era normal, afinal, ele morava em pleno deserto de vento e gelo. Ele, de pronto, respondeu que não, que o frio nunca será normal de se sentir e acostumar. "Não somos ursos, ou seja, não temos pele grossa com pelos. Somos animais frágeis, temos dentes pequenos e pés sensíveis. Logo, o frio não é algo para nós, definitivamente", ele disse. 

Bem, deixando de lado o aspecto biológico, o inverno é um tempo de recolhimento e aprendizado. Claro, é difícil imaginar que, após o verão e estações agradáveis, possamos nos sentir acolhidos em pleno 10°C de um dia nublado, mas acontece. Assim como alguns animais hibernam, o ser humano passa por algo parecido. Nem que seja espiritual ou emocionalmente. Também não precisa ser no inverno (rs). A questão é que é necessário esse movimento de reflexão. Não somos máquinas (ainda), logo precisamos de algo a mais, seja o nome que for - análise, perdão, redenção, autoconhecimento. Para seguir, é preciso se recolher, mas calma, isso também vai passar, afinal, nunca nos acostumaremos ao frio. A primavera é logo ali.

domingo, 30 de maio de 2021

Aquele velho


Aquele velho já foi uma criança inteligente, um jovem entusiasmado, um adulto organizado, um pai parceiro e um avô carinhoso, mas nunca deixou de ser o passado que insistiu em reviver. Naquela velha cadeira na varanda, perto do mar, ele lia papéis velhos, amassados e corroídos pelo tempo, porém, com algum esforço, conseguia sentir o cheiro do perfume do dia em que se conheceram, no gosto da cerveja gelada num bar que já foi fechado, numa cidade que já não mora mais. O choro não é um sentimento ou um ato, mas um samba antigo que se repete nas suas memórias de juventude. Quando perguntado pelo neto no que sempre estava pensando, aquele velho respondia: “No lugar que um dia foi meu, para onde fujo, onde ninguém irá me encontrar. Nas minhas lembranças.” A palavra ‘saudade’ só existe no português e para aquele velho, era como um poeta sozinho em uma ilha, uma flor esquecida no concreto, a marca de batom num copo já vazio. Um amor que nunca acabou, lembranças jamais esquecidas.